“Menina veste rosa e menino veste azul”: a ideologia por trás do gênero
Nos últimos anos tem sido comum observar grupos ligados a setores mais conservadores da sociedade denunciando uma suposta imposição daquilo a que chamam de “ideologia de gênero”. Mas o que é, mesmo, essa tal ideologia? E a que(m) serve esse discurso que combate a tal “ideologia de gênero”?
A palavra “ideologia” é carregada de sentidos, muitos deles controversos. Começou como “a ciência das ideias” proposta pelo Conde Destutt de Tracy, e posteriormente evoluiu para ser definida como um conjunto de ideias. Daí se falar em “ideologia marxista”, “ideologia feminista” ou “ideologias conservadoras” como conjuntos de ideias ou pensamentos. É desse significado que se reveste a chamada “ideologia de gênero”.
Esse termo é utilizado, sobretudo por pessoas, grupos e lideranças ligados a referenciais conservadores de sociedade, para se referir a todo um conjunto de teorias sociais sobre gênero e sexualidade. Essa tal “ideologia de gênero” é, basicamente, o agregado de perspectivas que consideram que o gênero é uma construção social, que não há diferenças naturais significativas entre homens e mulheres — ao menos não a ponto de criar lugares sociais (e até destinos) radicalmente distintos — e que devemos nos esforçar para quebrar a binaridade Homem X Mulher pelo fato de ela produzir sofrimento aos indivíduos. Em suma, as perspectivas feminista e queer é que estão sendo chamadas — muitas vezes pejorativamente — de ideologias de gênero.
De modo muito resumido — afinal, não pretendo trazer para cá um texto acadêmico — estas perspectivas adotam o posicionamento ético, político e epistemológico de que não somos, em essência, homens ou mulheres. Nosso gênero não é algo que nós detemos, mas sim algo que nos é imposto, desde antes de nascermos — daí afirmações célebres como a de Simone de Beauvoir (1949), que afirmou que não se nasce mulher, mas torna-se uma. São teorias que põem em xeque a ideia tradicionalmente difundida de que nossa biologia determina quem somos e os lugares que ocupamos no mundo. Autoras destas áreas pressupõem que, para além de algumas diferenças biológicas básicas entre machos e fêmeas da espécie humana, há (muitas) diferenças socialmente construídas e impostas sobre nossos corpos — o que constitui o campo do gênero.
Uma das autoras mais célebres deste campo, Judith Butler (2003), afirma que o gênero é performativo, o que significa dizer que ele se constitui a partir da repetição de atos que o reafirmam e cristalizam. Atos estes que precedem a existência do próprio “ator” e lhes são impostas desde sempre. O gênero é, nesse sentido, algo que fazemos, não algo que somos. É um molde ou uma cela no qual somos encarceradas e encarcerados, e pressionadas/os e marginalizadas/os sempre que tentamos fugir aos limites impostos por esse molde. Gênero é, antes de mais nada, um instrumento de poder e controle social.
Butler (2003) também afirma que, se é o gênero uma encenação, ele pode ser encenado de formas inesperadas e potencialmente subversivas, de modo a romper com as relações de poder impostas pela heteronorma — o regime de poder que impõe uma coerência artificial entre biologia, gênero e sexualidade. Uma ideia como esta é claramente revolucionária, contra-cultural e isto explica os ataques que a autora e sua teoria sofrem — basta lembrar de sua visita recente ao Brasil, em 2017, quando foi agredida e teve uma palestra boicotada por grupos direitistas radicais. Estes ataques normalmente acusam a tal “ideologia de gênero” de ensinar que “meninos” podem ser “meninas” e vice-versa (provavelmente, inferem isto a partir do conceito de performatividade de gênero — aquela ideia de que não somos um gênero, mas fazemos um e podemos refazê-lo).
Como disse, esse texto não se propõe a ser acadêmico — muito embora já tenha tido três parágrafos bastante academicistas — mas sim provocativo. Convido a leitora e o leitor a olhar por um outro ângulo as acusações feitas a Butler e sua teoria (bem como a outras autoras também). Colocando um pouco de ácido à questão, podemos nos perguntar por que, segundo a perspectiva dos acusadores das perspectivas feministas e Queer, é aceitável determinar as cores a serem usadas pelas crianças, mas é inaceitável a ideia de que uma pessoa adulta modifique sua genitália para adaptá-la à sua identidade subjetiva de gênero?
Por que afirmar que nossa constituição biológica não nos determina é uma afirmação que faz parte de uma ideologia de gênero, mas impedir meninos de brincarem de boneca também não pode ser encarado como um tipo de ideologia? Não seria também um ato ideológico impor a meninos que não chorem em público, ou que devem resolver seus problemas interpessoais com agressividade, ou dispensá-los de tarefas domésticas, ou impedi-los de estudarem balé ou de usarem bijouterias? Não seria também uma ideologia essa ideia que impõe às meninas que usem maquiagem, que se depilem quando adolescentes, que se submetam e se calem diante de problemas com meninos, ou que façam todas as suas tarefas domésticas sozinhas, ou que não joguem futebol e prefiram, sei lá, vôlei, ginástica artística ou balé (o mesmo balé proibido aos meninos)?
Por que questionar todas estas coisas é “ideologia de gênero” e ensinar isto a crianças inocentes, restringindo suas vidas e suas possibilidades de desenvolvimento, não é absolutamente nada ideológico? Por que ninguém diz que é ideológico o ato de criar dificuldades para crianças brincarem juntas, separando-as por gênero, lhes reservando brinquedos específicos e lhes privando de desenvolverem vínculos saudáveis e todo seu potencial criativo? Sendo que estas atitudes têm implicações muito mais sérias para o desenvolvimento dos indivíduos do que dizê-los que podem ser exatamente quem são. E o paradoxo é que os acusadores da “ideologia de gênero” argumentam justamente que estão defendendo as crianças de possíveis prejuízos psíquicos causados pela exposição a tais “ideias” — e não percebem o quanto restringem o desenvolvimento das próprias pessoas que visam defender.
Para mim, existe sim uma ideologia de gênero. E é aquela que diz que meninos vestem azul e meninas vestem rosa. A desconstrução que fazemos dela? É apenas uma (necessária) contra-narrativa. Em defesa das tantas mulheres e pessoas LGBT+ que sofrem danos incalculáveis em razão da exposição, desde antes de suas existências, a esta ideologia.
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Beauvoir, S. D. (1980). O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet, 4. (Original publicado em 1949).
Butler, J. (2003). Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade; Trad. Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. (Original publicado em 1990)