Algumas falácias sobre o pardo: Parte 1

Leonardo Rocha
9 min readFeb 20, 2021

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Desde 1991, o censo demográfico brasileiro realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) tem coletado dados sobre identificação étnico-racial da população brasileira através de cinco categorias: branco, amarelo, indígena, preto e pardo. Esta última inclui, segundo a própria definição do Instituto[1] as pessoas que afirmam pertencer a duas ou mais raças ou que se identificam com a mistura de duas ou mais cores ou raças.

Definições das categorias étnico-raciais do IBGE. Fonte: Manual do Recenseador, 2021.

Portanto, pardo é o termo oficialmente utilizado no Brasil para designar as populações mestiças. Não obstante a clareza de sua definição (ao menos no manual do IBGE), este termo tem sido objeto de disputas teóricas e político-ideológicas e frequentemente é utilizado para forjar uma pretensa realidade em que o Brasil seria um país de maioria negra. Tal conclusão se dá através da somatória do número de pardos (43%) ao de pretos (8%) — dados do Censo Demográfico de 2010, números arredondados. Acredito que essa soma revela-se inadequada do ponto de vista sociodemográfico e, portanto, é errôneo referir-se a ela como o quantitativo real da população negra brasileira. Sobre isto, abordei algumas problemáticas desta soma em um texto anterior.

Leia também: O que é apagamento indígena?

A soma dos dados de pretos e pardos, em que pese sua importância para a formulação de políticas públicas de igualdade racial, cai em alguns problemas. A meu ver, eles são três: (1) a nomeação que se deu a este agregado estatístico — “negros”, quando a verdade é que muitas pessoas pardas não se identificam ou são lidas dessa forma; (2) tomar (e divulgar) este número como a quantidade real e literal da população negra brasileira; e sobretudo (3) usar essa soma fora do contexto de políticas públicas para criar uma narrativa (midiática, acadêmica e, sobretudo, política) de negação das identidades mestiças.

A afirmação de que o Brasil é um país majoritariamente negro é falaciosa, e tão falaciosos quanto são alguns dos argumentos que sustentam a negação da categoria parda. Ao longo de alguns anos, tive acesso a alguns destes (pseudo) argumentos através de diversos meios — reportagens, artigos científicos, vídeos no YouTube, postagens em redes sociais, textos informais, revistas, sites e blogs (incluindo aqui no Medium), debates virtuais e pessoais com amigos e conhecidos, dentre outros meios. Pretendo nesse texto compilar alguns dos argumentos mais comuns e propor algumas réplicas a cada um deles — como são muitos, optei por dividir o texto em duas partes.

Pardo é papel

O pseudo-argumento mais comum e também o mais simples de refutar. Também existem papéis de cor branca, preta e amarela. Simples assim!

Lá fora só existe branco e preto

Um dos argumentos mais problemáticos e distorcidos. A primeira problemática é que este pseudo-argumento não especifica a que se refere ao falar “lá fora”. Afinal, existem 195 países “lá fora”, qual deles adota apenas as categorias “preto” e “branco”?

Esse argumento não se sustenta quando se constata que por todo o mundo existem categorias raciais que designam as populações miscigenadas: métis (Canadá), coloured (África do Sul), mestizo (Peru, Equador, Honduras, dentre outros países hispânicos), ladino (Guatemala), moreno (Venezuela), mulato (alguns países caribenhos e latino-americanos), mixed-race (Reino Unido e alguns outros países de língua inglesa) e pardo (Brasil). Vejam: pardo é só mais uma dentre tantas categorias de raça mista existentes ao redor do globo.[2]

Noto (ou pressuponho) que quando se fala em “lá fora”, normalmente é aos Estados Unidos que se faz referência. Mas será que na terra do Tio Sam realmente só são oferecidas duas opções de autodeclaração racial à população? Os fatos dizem que NÃO! O USA Census Bureau (o órgão oficial de recenseamento estadunidense) classifica oficialmente a população norte-americana em cinco grupos (e não apenas dois): brancos, negros, asiáticos, nativos americanos e do Alasca (i.e., indígenas) e nativos do Havaí ou de outras ilhas do Pacífico (Pacific islanders). Há ainda a opção de marcar Some Other Race (“alguma outra raça”), caso o indivíduo não se identifique com as outras opções. Além disso, desde 2000 é permitido selecionar mais de uma opção — estratégia para captar identidades múltiplas, que estão em franco crescimento na sociedade norte-americana.[3]

Quando alguém me afirma que não existe a categoria parda “lá fora”, me pergunto se por acaso esperam que exista, literalmente, a mesma palavra (pardo) em outros países para que a categoria seja considerada legítima e os povos mestiços existentes. Há aí uma obviedade ignorada: ainda que não haja literalmente o mesmo nome em outros lugares, as outras categorias que mencionei logo acima cumprem com a mesma função que o pardo cumpre no Brasil. Incluindo aí o Some Other Race dos tão idolatrados (e supostamente binários) Estados Unidos. E quem são os norte-americanos que marcam Some Other Race?

Os dados[4] mostram que 97% do total de estadunidenses que afirmaram pertencer a esta misteriosa outra raça são… Latinos! É possível inferir que são principalmente mexicanos, salvadorenhos, guatemalenses, peruanos, colombianos etc., de origem miscigenada (sobretudo euro-indígena) e que em seus países são chamados de mestizos — e na ausência dessa categoria no censo dos EUA, marcam Some Other Race. Então realmente nos EUA não tem o pardo, mas na prática, a categoria residual de “outra raça” funciona como tal— reflexo do quanto aquela sociedade é refratária a termos intermediários e categorias de mestiçagem, tão comuns aqui na América Latina.

Mulheres salvadorenhas. Imagem retirada do Google.

Outro dado interessante é que os cidadãos norte-americanos que marcaram a opção Some Other Race chegam inclusive a formar o segundo maior grupo étnico-racial (atrás apenas dos brancos) em estados como Califórnia (21%) e Nevada (14%), e o terceiro maior no Novo México (15%), Texas (13%), Arizona (12%) e no Colorado (8%) — “coincidentemente”, todos estes estados abrigam importantes comunidades latinas, dentre as maiores dos EUA[5]. Portanto, não é difícil pensar que estas parcelas das populações desses estados correspondem a comunidades de mestizos hispânicos. No país como um todo, também estão na terceira posição, sobrepondo três das cinco “raças oficiais”, em um caso único no mundo em que uma categoria que deveria ser residual acabou por se tornar uma das mais populares, evidenciando a fragilidade e ineficiência do pensamento binário americano, que (infelizmente) inspira certas correntes teóricas e políticas daqui.

Mas não devemos olhar apenas para a população que marcou a opção de Outra Raça no censo dos EUA se quisermos compreender as dinâmicas das identidades mestiças/multirraciais naquele país. Outro setor populacional importantíssimo são aqueles que optaram por marcar duas ou mais opções de raça (Two or More Races population). E os dados[4] mostram que 32,7% de todos que fizeram esta escolha no último censo estadunidense são também latinos, que são mais propensos a marcar mais de uma opção do que os não-latinos. É importante frisar que no censo dos EUA, latino não é uma raça, e sim um termo guarda-chuva que abarca quaisquer pessoas de origem latino-americana independentemente da raça — ou seja: lá, após se autodeclarar latino, você ainda deve escolher uma (ou mais) das seis opções de raça, como todos os outros cidadãos. Abaixo os dados de autodeclaração racial dentro da comunidade latina:

Autodeclaração racial entre latinos estadunidenses. Fonte: USA Census Bureau, 2020.

A maior parte da comunidade latina dos EUA (42,2%) não se identifica com nenhuma das opções de raça do censo. Em seguida vêm os multirraciais, ou seja: o grupo que marcou duas ou mais opções, com expressivos 32,7%. Em seguida vêm uma minoria branca de 20,3%. Os demais grupos (indígenas, negros, asiáticos e nativos do Pacífico) somados mal chegam a 5%. Agregando as autodeclarações de Outra Raça e de Duas ou Mais Raças, temos um quantitativo 74,9%, uma esmagadora maioria que é muito fácil inferir como sendo uma população de mestiços! Portanto, não, lá fora as coisas definitivamente não são em preto-e-branco.

Pardo é um limbo, um não-lugar

Normalmente, esse pseudo-argumento deriva diretamente daquela ideia de que “lá fora não existe pardo”, que destrinchei mais acima — afinal, se nenhum país utiliza a categoria parda nas operações censitárias, deve ser então porque não existe mesmo esse tal povo pardo. Mas é como também falei ali: pardo é sinônimo de mestiço. E no Brasil há vários tipos de mestiços: mulatos (branco/negro), caboclos* (branco/indígena), cafuzos (negro/indígena) etc. Concordo que pardo realmente pode não ser uma raça, afinal, é tão-somente uma categoria estatística. Porém, é uma categoria estatística que engloba diversas identidades étnico-raciais, e que nem sempre se relacionam a uma afrodescendência.

Muito também se fala sobre ser um não-lugar — e isso está ligado à ideia de que os pardos são necessariamente “negros de pele clara” que, por não se reconhecerem negros, por não terem o letramento racial, estão nesse limbo, nesse não-lugar, até que saiam dele e abandonem a “pardice” para assumirem sua negritude que lhes é de direito. Todo o meu apoio à galera que está fazendo esse movimento, mas é preciso cuidado com uma coisa: essa premissa não é de todo verdadeira e não representa todos os casos de autodeclarados pardos.

Afinal, uma boa parcela dos pardos são descendentes de indígenas. Esse movimento de assumir negritude não deveria estar sendo imposto a este setor da população parda — afinal, se o caboclo é um mestiço de brancos e indígenas, não está negando negritude alguma ao se autodeclarar pardo. Isso para não mencionar que mesmo mestiços afrodescendentes podem, mesmo com todo o letramento racial e consciência sobre as relações raciais brasileiras, ainda assim se reconhecerem no lugar de pardas e não de negras, minando essa falsa premissa de que o pardo é “um negro alienado” que deixará de se dizer pardo quando for “iluminado” pela “verdade” de certas teorias raciais.

Muito ouço que pardo é um não-lugar, mas penso que não-lugar é para onde os pardos indígeno-descendentes são relegados quando esta opção é excluída ou subsumida à negritude — afinal, se os caboclos não são brancos (por não terem essa cor), nem negros (por não pertencerem à diáspora africana), nem indígenas (por não estarem no universo cultural das etnias nativas) e nem mesmo pardos (porque isso não existe ou, quando muito, é subcategoria da negritude), então o que são os caboclos? E não adianta ser reducionista e dizer que é só se afirmar indígena. Não é tão fácil assim quanto parece!

Pardo é um termo racista porque significa branco sujo

Geralmente este pseudo-argumento surge após se pegar um dicionário e ali encontrar “branco sujo” como uma das definições para o verbete “pardo”. Mas palavras são produzidas dentro de um contexto e hoje em dia, quando alguém chama outra pessoa de parda, dificilmente é com este sentido. Assim como também não acho que quando Pero Vaz de Caminha chamou os indígenas de pardos, estava dizendo que eles eram brancos sujos. Pardo, no idioma português, é sinônimo de marrom.

Como se pode constatar, grande parte das falácias sobre o pardo não se sustentam após exames simples dos fatos. Para esta primeira parte, fico por aqui, dada a extensão das discussões já tecidas até o momento e de modo a evitar criar um texto por demais denso. No próximo texto, a ser publicado em breve, tentarei discutir alguns outros pressupostos errôneos (e ideologizados) sobre o pardo.

*Obs.: o termo caboclo é extremamente polissêmico e suas definições variam e muitas vezes são distintas e até contraditórias entre si. Pode significar, em algumas regiões ou contextos, o mestiço de indígenas e europeus que se identifica como pardo. Mas também é um termo que, especialmente no Sertão nordestino, funciona como sinônimo de índio ou indígena e informa pertencimento étnico, havendo inclusive etnias inteiras que adotam caboclo como etnônimo. Neste texto, por ausência de um termo alternativo, utilizo caboclo em referência aos pardos de ascendência indígena. Entretanto, o leitor deve estar ciente da multiplicidade de sentidos que rondam o termo.

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Leonardo Rocha

Psicólogo. Made in Nordeste. De origem indígena. Estudioso de gênero e raça/etnia. Insta: @leorocha.lr